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..." ele pôde dar-se o gosto de ver os incrédulos contemplando, com a boca aberta, o maior transatlântico deste mundo e do outro, encalhado diante da igreja, mais branco que tudo, vinte vezes mais alto que a torre, e mais ou menos noventa e sete vezes maior que o povoado, com o nome gravado em letras de ferro, halalcsillag, e ainda gotejando pelos lados as águas antigas e lânguidas dos mares da morte".

(García Márquez)

Assombrada pelo Titanic há alguns dias, desde que li o conto “A última viagem do navio fantasma”, de Gabriel García Márquez.

Me dei conta de que os naufrágios me atemorizam. Com a leitura, fui transportada de volta ao Porto de Santo Antônio, em Fernando de Noronha, onde, no ano passado e pela primeira vez, mergulhei para conhecer os restos mortais de uma embarcação.

O Maria Stathatos aportou na maior ilha do arquipélago em junho de 1937 (ano de nascimento de outra Maria, minha mãe), quando foi consumido pelas chamas de causa desconhecida. Os tripulantes abandonaram o convés à noite, resgatados por um navio alemão, enquanto o vapor grego queimava até às ferragens e afundava para sempre em águas brasileiras.

A carcaça de aço está a uns cinco metros de profundidade. É fácil, com a limpidez do mar de Noronha, visualizá-la, ainda sólida e recoberta de líquens, sem que seja preciso mergulhar, o que facilitou minha vida de sereia fajuta.

O sobrevoo líquido sobre aquele esqueleto me deu calafrios. A curiosidade cedeu à angustia. Não tinha ideia, até o encontro, que a cena me remeteria a sentimentos desoladores. A decrepitude e o abandono do Maria emergiram meus fantasmas.

Não me esforcei para chegar mais perto. Permaneci à superfície e observei, de óculos de mergulho, aquela monstra morta debaixo de mim apenas por alguns minutos. Foi o bastante. Decidida, bati os pés em retirada com a força que me foi capaz, pois intuí que dessa fuga dependia minha sobrevivência. Precisava ir para o mais longe possível da presença do casco afogado.

O pavor de submergir é muito humano. Ou talvez muito símio, uma vez que os macacos também não têm muito apreço pelas aventuras molhadas. Parece um paradoxo não saber nadar de forma instintiva, se experimentamos nove meses de vida aquática antes de nos tornarmos terrestres. Mas do desconforto em relação aos navios afundados, não fazia caso até me deparar com um deles fora das telas do cinema.

Cara a cara com o Maria, senti uma espécie de vórtice a me atrair para aquele esquife oceânico. Nem a possibilidade de me transformar num exótico coral habitado por peixes multicoloridos apaziguou o temor pelo fundo do mar, pela fossa abissal que é ter pulmões num ambiente de guelras.

A distância da areia da praia, a descomunal diferença entre a estrutura do navio e a estrutura do meu corpo, os gritos dos afogados ancestrais, a densidade monumental do Atlântico: tudo, de súbito, era âncora a me levar ao fundo. Escapei por pouco de sucumbir aos apelos das sirenas.

Há muitos anos eu não imergia na escrita de Gabo. Percebo que todo autor tem suas obsessões estilísticas e temáticas. Escreve-se mais do mesmo em cada conto, romance ou crônica, mesmo que de forma magistral. Não há nessa afirmação uma crítica, apenas a constatação da identidade de quem cria.

E, sem saber se os assuntos nos escolhem ou se somos escolhidos por eles, após o conto mágico de Gabo, leio a curiosa notícia sobre um hotel na Namíbia que se inspirou em réplicas de naufrágios e anda fazendo sucesso. Eu hein, não pagaria um real pela hospedagem.

Luciana Assunção lulupisces.blogspot.com

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